quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Escravo da própria língua


Todo mundo ao menos um dia na vida já se percebeu escravo das próprias palavras, seja por uma palavra empenhada, um segredo revelado a um amigo ou pior, por uma ‘estória’ contada no calor dos sentimentos de ódio ou de raiva.

No primeiro e no segundo caso é mais fácil de se “libertar” dessas amarras que a língua nos arma, pois, via de regra, tanto a palavra empenhada quanto o segredo revelado envolvem você e mais outra pessoa, e você terá que se resolver apenas com ela.

No terceiro caso, quando uma estória é contada para uma plateia ao sabor dos sentimentos é muito mais difícil se libertar das armadilhas da língua, e é praticamente impossível quando esta plateia é ligada ao falante por um vínculo grupal ou familiar, onde esse falante tem que zelar por sua reputação ou preservar a imagem que a plateia/grupo tem dele.

A raiva e o ódio sufocam a razão do falante de tal modo que, nesses momentos, ele, o falante, parte cegamente para o ataque usando as palavras não mais para descrever a situação que gerou o conflito, o que seria até legítimo, mas simplesmente as profere para “acabar” com a outra pessoa. A essa altura, na estória contada, uma sardinha se torna uma baleia, um gato um feroz leão, um pinto um pavão .

A multidão das palavras, expandidas na medida da sua raiva, não permitem mais que o falante recue quando os ânimos se acalmam e é reestabelecida a razão. Ao contrário, com a volta da razão vem o sentimento de vergonha, e com esse sentimento o instinto de preservação da autoimagem. Pronto! Nasceu mais um escrevo da própria língua. Essa dinâmica é mais ou menos aquela que o demônio usa quando te tira a vergonha ou razão (consciência moral) para fazê-lo pecar, mas tão logo você caia nessa armadilha demoníaca ele volta e te coloca a vergonha elevada na 10.

Nesse circo dos demônios a pessoa até admite, ao menos para si, que se meteu num labirinto praticamente sem saída, pois não só exagerou nas palavras como também acabou por falar o que não devia. Quem não conhece o jargão que diz que "há três coisas na vida que não voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida", e aqui nesse texto a "oportunidade perdida" se insere no seguinte contexto: não ter economizado nas palavras ou a ter faltado com sinceridade devida.

Todos sabemos que um escravo não tem vontade própria. Por isso mesmo que quando essa pessoa, já cativa pelas próprias palavras, está no seu grupo ou mesmo diante de uma plateia, acaba sustentando aquele teatro mesmo depois que sua consciência o revelou com tal, aumentado ainda mais o sofrimento dessa criatura porque as verdades que ela proclama são insuficientes para descrever o sentido real dos acontecimentos (o que ela quer que os outros acreditem) muito menos a dimensão em que eles realmente aconteceram. 

Essas coisas que descrevi podem acontecer em várias esferas da vida e o nível de sofrimento dessas pessoas não está necessariamente na medida do que foi falado, mas no que ela sabe que está em "jogo". Falo essas coisas por experiência própria, e digo que esse ciclo vicioso é praticamente impossível de ser quebrado por forças puramente humanas.